Nicolai Glaskov/ Николай Глазков

 


Vemos uma catedral ortodoxa ao pé da qual homens ajustam um balão, fico por cordas e embaixo do qual há uma fogueira.  Alguém, com barbicha e traços asiáticos, dá ordens e sobe pelas escadarias do templo. Seu nome é Efim. À janela, como que respondendo a alguém, Efim grita que irá em breve. Escuta quando gritam debaixo para vir logo. Há um princípio de confusão. Empurra-empurra. Efim acomoda-se no balão. Gritam para cortar a corda. Vemos o balão desprender-se à medida que alguém grita. “Estou voando”, ouvimos a voz de Efim. Vemos, de cima, um rio com canoas sendo navegadas. O balão sobrevoa igrejas. Até despencar na beira do rio. É assim que se inicia o filme Andrei Rublev (1966), produção dirigida por Andrei Tarkovski. 

Embora não tenha sido ator profissional, quem interpreta o homem voador é Nikolai Glaskov. Durante muitos anos, o poeta era alguém conhecido e respeitado no meio literário, mas que não obtinha permissão para publicar. Por conta disso, passou a publicar livrinhos artesanais editados por ele mesmo que recebeu o nome de “samizdat”, recurso amplamente utilizado pelos escritores anti-soviéticos, algo que Glaskov nunca foi. A ironia e o humor, tão presentes em sua poesia, eram recursos que não agradavam aos burocratas do partido. Vejamos como Glaskov abordou um tema bastante sensível aos russos: a Grande Guerra Patriótica, em tradução minha.  


Oração


Senhor Deus, intervenha pelos soviéticos, Defenda o país contra a raça pura, pois Todos os Teus Evangelhos Hitler descumpre muito mais que nós.

***


Молитва


Господи, вступися за Советы,

Защити страну от высших рас,

Потому что все Твои заветы

Нарушает Гитлер чаще нас.


A pergunta que se impõe é: por qual razão, Andrei Tarkovski convidou um não-ator para atuar em seu filme? Quem dá uma pista sobre isso é o poeta Vladimir Burich no livro  Recordações sobre Nikolai Glaskov, editado em 1989 por Aleksei  Ternovski e pela viúva Rosina Moiseevna Glaskova.  Em 1965, quando começaram as filmagens, Glaskov já havia finalmente conseguido publicar, oficialmente seus livros, em grandes tiragens. Burich comenta que Andrei Tarkovski, filho de um grande poeta, estava a par da produção de poesia contemporânea da Rússia à época. 

Glaskov foi um poeta de seu tempo. Seu senso de humor era uma resposta, sobretudo, à atmosfera em que vivia. As discussões sobre a utilidade da arte, por exemplo, uma das bases dos preceitos do realismo socialista, estiveram presentes em um de seus poemas. Eis aqui, em tradução minha, como o poeta reagiu:


Dizem para mim que as “janelas da TASS” 1 Ante os meus poemas têm mais serventia. As latrinas servem do mesmo jeito, iguais. Porém, isto não é poesia.



***

Мне говорят, что «Окна ТАСС»

Моих стихов полезнее.

Полезен также унитаз,

Но это не поэзия


(1) TASS - Abreviatura de agência de notícias russa, mais importante daquele país. 

***

As aparições de Glaskov no cinema não se restringiram à obra-prima de Tarkovski.  O cineasta Andrei Konchalovsky, não por acaso co-autor do roteiro de  Andrei Rublev, convidou Glaskov para uma pequena atuação em Romance sobre apaixonados (1974). Entretanto, aquele que poderia ser o seu maior papel no cinema, infelizmente, não foi levado adiante. A cineasta Vera Stroeva o convidou para interpretar Dostoiévski em Uma pessoa especial, produção de 1968.  Os censores cismaram de ver uma referência velada ao julgamento dos escritores Andrei Sinyavsky e Yuli Daniel, ocorrido em 1966, condenados por agitação e propaganda anti-soviética. 

Na tradição daquele país, o poeta é o sujeito que tem o papel de dizer a verdade e de não ter medo; o poeta, neste sentido, se equivale à figura do profeta e cumpre a ele, como escreveu Pushkin, vagar pelo deserto, ouvir a voz de Deus e repassá-la ao povo. Eis porque uma das formas mais eficazes de estudar a história da Rússia é através de sua poesia. Glaskov é um retrato de seu tempo e como ele brilhantemente escreveu quanto mais suscitar atenção aos historiadores uma época pior ela será aos seus contemporâneos.


Gênio e bogatyr 2 toda vida eu quis ser isso Inigualáveis versos eu fui concebendo. Sem barril de Diógenes, um diogeníssimo: Sem nenhuma lanterna eu encontrei a mim mesmo. Sei: as almas de todos estão com feridas, Está faltando o pão, não é bastante o vinho. Reneguei até mesmo falhas cometidas, Os dias de hoje seguem neste ritmo. O que sei é que nada a ser feito se obriga... Poemas? Nos poemas há apenas palavras Se eu fosse o pincel de um estupendo artista: Cartões de racionamento 3 era o que pintava. De minha escrivaninha eu miro o mundo em volta. Século vinte, século incomum e quanto Mais for interessante a quem estuda história Mais infeliz será para os contemporâneos! (anos 1940) [2] “Bogatyr”, herói descrito nos antigos poemas épicos eslavos, equivalentes cavaleiros andantes medievais. [3] “Cartões de racionamento”, eram cupons distribuídos à população para aquisição de comida. O sistema vigorou de 1940 a 1947. Лез всю жизнь в богатыри да в гении, Небывалые стихи творя. Я без бочки Диогена диогеннее: Сам себя нашел без фонаря. Знаю: души всех людей в ушибах, Не хватает хлеба и вина. Даже я отрекся от ошибок — Вот какие нынче времена. Знаю я, что ничего нет должного… Что стихи? В стихах одни слова. Мне бы кисть великого художника: Карточки тогда бы рисовал. Я на мир взираю из-под столика, Век двадцатый — век необычайный. Чем столетье интересней для историка, Тем для современника печальней! (1940-е)


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